sábado, 31 de agosto de 2013

Poema natural, de Adalgisa Nery



Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima? 
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra? 
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento: 
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu

terça-feira, 27 de agosto de 2013

6

quando na praia
eu fico retardada
e esqueço que a idade dá forma ao corpo
e rolo
rolo da areia pra água
e da água prô céu





terça-feira, 20 de agosto de 2013

stalk me up

se eu analisar, são cruéis. mórbidos.
pouco audaciosos. desses que não passeiam.

vou te contar um segredo:
eu nunca colecionei álbuns pois nunca me foi concedido o delicioso azar provocante das figurinhas repetidas.

assim sendo, era muito fácil.
assim sendo, eu logo desisti.

gosto de passear, gosto do gosto do inédito.
enquanto eles repetem afeto-urubu-carniça, eu faço voos mais altos
em belo tapete,
desses que voam.

jamais conseguiria o que eles conseguem
e eles JAMAIS conseguiriam o que eu consigo.

não há vencedores.
mas pelo menos
para mim
há ineditismo.





um mundo todo novo
um novo fantástico ponto de vista




segunda-feira, 19 de agosto de 2013

first love

relato antigo, 2007, creio

Vou tentar. Começo: o menino mais bonito da sala era o Rodrigo Barbosa Santoro. Numa época de TV Pirata, ninguém o chamava de Rodrigo Santoro e sim de Barbooosa. Nos conhecemos com 3 anos, maternal, tia Concheta (sim, esse era o nome da minha primeira professora) e estudamos juntos no tal colégio de freiras até a quarta série. Eu era como ainda sou e serei pra sempre; a velhice vem, a essência é eterna: engraçada. Magrela, cabelo picotado, feito aquelas meninas judias de Auschwitz, umas orelhas de abano que não cabiam em mim, mas muito já serelepe e dada ao riso fácil. Rápida nas piadas, curiosa sobre a vida. Ah sim, também muito chata, reclamona, geniosa que só e metida à sabichona. Tínhamos sorteio das cadeiras, e como o destino me amava até então, sentei perto do Rodrigo durante muitos anos. E assim viramos comparsas. Eu, obviamente, muito apaixonada por ele. Ele, galã da sala, sorria para todas. Com 9 anos, nas férias de julho, o telefone da minha casa tocou, ao contrário de hoje em dia, antigamente eu adorava atender ao telefone, ser a primeira, chegava a disputar corrida com meu irmão para ser a primeira a dizer: “alô”. Vai entender, eu achava aquilo tão incrível, tecnologia sempre me impressiona. Então o telefone tocou, eu atendi, com uma voz taquarazinha que tive na infância e que graças aos hormônios, ficou mais grave com o passar do tempo. “Alô, Letícia? É o Rodrigo Barbosa!” A sala era empestada de Rodrigos e Fernandas, o que nos dava um tom nobre de só nos apresentarmos com nome e sobrenome. Isso, meus caros leitores, numa época em que ninguém se ligava. Eu até tinha anotado na minha agenda da Turma da Mônica, os números dos meus amigos. Mas era isso. Era só pra anotar. Ninguém se ligava e ficava horas no telefone. Você lembra dessa época? Oh, my. Ouvi a apresentação do meu adorado, senti a barriga de verme se contorcer e respondi veloz: “Oi Rodrigo, tudo bem?” pois era assim que via minha mãe fazer ao telefone. “Oi, fulano, tudo bem?” Eu tinha 9 anos e alguma noção de vida real. “Letícia, você quer namorar comigo?”, ele disse rápido e cruel. Senti alfinetes entrando no meu ouvido. E desliguei. Assim. Pá. Na cara dele. Fiquei muda, gaga, surda e monga. Passei o dia nervosa e xingando meus irmãos. Talvez tenha quebrado um copo. Talvez esteja inventando essa parte. Mas sempre quebrei copos, então deixa assim. Quebrei um copo. As férias de julho acabaram, e o primeiro dia de aula era mais assustador do que qualquer outro, pois haveria de olhar para Rodrigo Barbosa e dizer “Oi, tudo bem? Como foram suas férias?”. Quando eu entrei na sala, eu vi, eu não era boba, ele ficou sem graça. E eu, rainha de um deserto, com poder mas tão solitária, disse um “oi” coletivo e comecei a contar da viagem para o sítio, cavalos, joaninhas e lareiras. Em menos de uma semana, já éramos de novo, comparsas. Sempre perto, sempre rindo. Jogávamos bafo, minhas figurinhas eram do álbum da novela Vamp e de alguns atores galãs da época: Rob Lowe, Tom Cruise. Que coisa. Ele me deixava ganhar pois provavelmente não queria figurinhas de astros norte americanos. E também porque – cá entre todos – ele devia gostar de mim. Mas eu olhava pra ele, tão lindo e traumatizada pela magreza e pelas orelhas, refletia calada: “Não foi ele que me ligou e me pediu em namoro, não foi. Acorda, Letícia”. A quarta série veio e com ela, algumas meninas começavam a ter peito, e não só peito físico, mas também atitudes mais...hum... mocinhas? É. De repente pararam de falar de papéis de carta e começaram a falar do fulaninho de tal, da sexta série. Eu me assustei, pois o mundo do peito/atitude/mocinhas/meninos da sexta série já existia pra mim. Só que dentro. E ter que falar com a minha voz, dizer para todos, e assumir para mim mesma em voz alta que aquele mundo ia ser para o resto da minha vida, o meu mundo, foi muito difícil. Num dia qualquer, o telefone da minha casa tocou. Corri como sempre, bati o joelho na mesa, como sempre, atendi afobada e animada como sempre e “Alô, Letícia? É Rodrigo Barbosa!” Dessa vez só disse “Oi”, não consegui pronunciar “Tudo bem?” pois talvez tivesse medo de ouvir a verdade. Eu já disse que 8 entre 10 garotas gostavam dele? Pois. Oito entre dez meninotas babavam por ele. E não tinham vergonha de contar, de explanar. Eu, com a úlcera começando o processo de desenvolvimento, ouvia as gurias contando e nunca abri a boca pra dizer “ah, eu também gosto dele”, pois aquilo era pouco. Eu gostava dele sozinha e era muito.
Então após meu “oi” meio assustado, mais uma vez a pergunta precoce e assustadora: “Letícia, você quer namorar comigo?” E é porque sou repetitiva e é porque sempre fui muito medrosa que desliguei de novo. E fui direto para o banheiro observar minha mutação de cor. Eu era uma lagosta viva, dentro da rede de um pescador, se debatendo. O telefone tocou novamente, fui atender, e era o meu amor. Com uma voz que até hoje me aterroriza, Rodrigo Barbosa Santoro disse: “Não faz isso comigo não, Letícia”. Fato: estou toda arrepiada agora. Quantos quilos pesa essa frase? Eu posso carregar isso? A lenta morte da lagosta na água quente do pescador. Como a lagosta, lutei um pouco, e disse frases inéditas, coisas que nunca nem tinha pensado: “Mas e a Aline? E a Luciana? E a Claúdia?” E ali era meu desespero de não ser a única lagosta na panela. O pescador, com voz de agonia disse que gostava de mim “desde o maternal.”. Ou seja: há 7 anos gostava de mim, era apaixonado por mim, pensava em mim na hora de dormir, sonhava comigo acordado, queria sentar perto de mim, ver meus desenhos, estudar comigo, ser do meu grupo, sentar do meu lado no passeio do colégio. Como eu. Como eu. Como eu. Mas é também porque o amor sempre me foi clandestino mesmo antes de saber de tal palavra, que não tive forças nos meus braços, meus braços lagostianos, de me agarrar a ele. Desliguei o telefone de novo. “Não-faz-isso-comigo-não”. O que eu estava fazendo? A crueldade espontânea e sem querer que chegava a ele, era meu maior medo e minha grande excitação, enfim, então eu sabia que sim, que ele gostava de mim. De mim. Desde o maternal. Foi ali que minha sensibilidade extra terrena iniciou o bizarro e complexo caminho amoroso da minha vida. Lagosta livre, fui nadar, e com cuidado, para não me machucar. No dia seguinte, nasceu minha atriz. Estampei sorriso de “nada de muito diferente aconteceu ontem na minha vida de dez anos” e conversei com todos, muito simpática, inclusive com ele, que não tinha coragem de tocar no assunto ao vivo. O telefone nos defendia da exposição. Nós tínhamos dez anos, nenhuma experiência com o amor, mas muita vontade e muita coragem da parte dele, e muito medo, da minha. A quarta série acabou, e eu mudei de colégio. Numa época sem internet, raros telefonemas (a não ser para implorar pelo amor de 7 anos, ah), perdi contato com a maioria dos meus amigos. E assim foi a vida “não faz isso comigo não, Letícia” ou “não faz isso comigo não, VOCÊ”. Com 16 anos, estava na Sendas, fase meio mulamba, grunge, de macacão, ui, indo comprar sabe-se lá o quê. Tinha uma banca de jornal e revista dentro da Sendas. Prestes a decidir se eu levava uma de Palavras Cruzadas fácil ou média, ouço uma voz: “Letícia Novaes!!!”, uma mulher de uns 40 e poucos anos me olhava de um jeito muito carinhoso e um pouco assustador, já que eu não lembrava de onde ela era. Sorri de volta e esperei explicações. “Sou eu, fulana de tal, mãe do Rodrigo Barbosa, que estudou com você a infância toda.” A infância toda. A mãe do Rodrigo rindo tanto seis anos depois. Ela devia saber. Mãe sempre sabe. Abracei, falamos sobre a época do colégio e de repente ela solta: “O Rodrigo tá vindo pra cá, você já tá indo? Espera só um poquinho.” Gelei meus 16 anos. Rodrigo chegou rápido e muito, muito mais baixo do que eu. Demos um abraço denunciando nossa virgindade. O assunto foi leve e ingênuo: “e aquelas gincanas, e o dia que você caiu do skate e o dia que a gente cantou aquela música com o professor Hamilton". Rodrigo continua bonito, mas agora era outra beleza. Beleza dos homens que não alcançam meus olhos. Meu pau imaginário não sobe. Estudava não sei onde, queria não sei o quê de vestibular. Eu tive que ir, sempre tenho. Desassossego perde. Combinamos, à la carioca style, de marcar alguma coisa. Sim, sim. Abraço sem sentir nada, rainha do deserto, mas sem ser Priscila. Quieta que nem me reconheço. Volto pra casa, me olho no espelho e vejo: uma alface no meu dente. Sou nova, portanto a primeira reação é o constrangimento agudo de franzir os olhos e querer deslocar meu crânio de posição. Encontrei Rodrigo Barbosa depois de 6 anos e cá estava essa alface no meu dente. Desloca, crânio, desloca. Mas tenho uma macaca velha que mora dentro de mim desde sempre. Então, aos poucos, endureço pela tangente e metaforizo tudo. Meu primeiro amor foi desligado. Fiz alguma coisa que pediram pra não fazer mais. Meu primeiro amor existiu até vazar. Meu reencontro com o dito cujo foi constrangido e verde. Agora sou lagosta de aquário europeu. Fiquei com um problema sério: perdi as vergonhas. E tomei medo das ligações. Físicas e as cerebrais. Mas a gente vai levando. Só atende quem quer. E só desliga idem. Agora como alface, me como, me mastigo, lettuce in my mouth, com azeite e sal que é pra dar gosto nessa vida. Escovo os dentes, deito na rede, e sinto a delicada colite da digestão da lagosta frenética que um dia se apaixonou por um cavalo marinho distraído.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

situação


tô dormindo no lodo
da vala confortável onde dormem
os apaixonados
e lambendo sabão de cachorro
sorrindo, e sentindo cheiro de maçã
onde não tem
chamando os amigos pra almoçar
e deixando a comida esfriar
pra falar de você




da peste da bruna beber