quinta-feira, 27 de maio de 2010

Ballet da centopeia

escrito em 2008


Confirmo com minha mãe a idade: 3 anos. Três anos tinha eu quando sofri um acidente que é minha primeira lembrança de vida. Antes disso, não me passa nada. Vejo as fotos, rio das minhas caretas, estranho tanta orelha para tão pouca criança, mas não lembro de nada. O estalo de que “sim, eu vivi isso, eu lembro disso, isso não é uma história que minha vó conta, eu estive lá!!!” só chega com meus três anos e um acidente que sofri no banheiro. Estava brincando com Kátia, minha empregada, com duração de 16 anos, que um dia virou dona de padaria – não são incríveis os humanos?, quando de repente lancei a escova que estava na minha mão contra o espelho. Quebrei um espelho com três anos, o que calculando, justifica qualquer azar que sofri até os dez anos. E acreditem, foram alguns. Sim, você pode me contar sobre a África ou nem precisamos ir até tão longe, o sertão nordestino, ou mais perto ainda, crianças sem sorte alguma equilibrando limões no ar, enquanto você reclama do seu carro sem ar-condicionado. Beleza. Beleza não. Feiúra. Feiúra demais. Me assusta, me deprime, questiono a humanidade, eu incluída. Mas problemas não são comparáveis, um dia me ensinaram, e fez tanto sentido, que tenho até medo de (me) assustar. Seu pai morreu e isso é arrebatadoramente doloroso, mas eu tenho direitos de achar uma grande tragédia o sapato mais lindo que já vi na vida não ter o meu número. Eu posso. Assim como você também pode me julgar por isso. Bem, dizia eu que minha primeira lembrança envolve um espelho quebrado. Carrego a mínima cicatriz no nariz até hoje. As fotos só denunciam quando há luz solar e foco. Tudo bem. Sempre tive um ligeiro tesão em cicatriz. Demonstrações físicas que aquela pele viveu - ou sobreviveu? Minha mãe era muito bonita, continua sendo, mas com o brilho dos trinta e poucos, ela iluminava salas e ônibus. Eu nasci com orelhas de abano, e preciso rir um pouco: HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA. É engraçado, vai. Eu era uma xícara. Era absurdo. Imagino meus pais assumindo um para o outro que sim, eu tinha um (d)efeito especial, com o qual eles não esperavam. Mas porque o reino das crianças é antes de tudo, sagrado, aquilo nunca havia me incomodado. Meu irmão deixava escapulir o óbvio: “Dumbo! Toppo Giggio!” Mas assim são irmãos, não? Tudo bem, eu também gritava “Adotado!” vez ou outra. Eu sabia que minha orelha era maior que a de todo mundo, mas assim também eram meus braços, minhas pernas, minhas mãos, então a lógica me aliviava e minha mãe fazia penteados que disfarçavam. E o que era brincar de pique-esconde, elástico, queimado, papeis de carta? Ora, por favor, orelhas, fiquem aí caladas. Com sete anos, nossa única decisão é se queremos ir ao banheiro. Então, foi assim que soube que iria fazer uma cirurgia corretiva. Não, não diziam “plástica”. Agora pausa. Como é costume meninas fazerem balé, minha mãe, como de costume, me colocou no curso de balé de um clube que havia perto da casa da minha vó Marphisa. Naquele ambiente minhas orelhas eram iguais às das meninas, por conta da faixa. Mas alguma coisa em mim não era igual. Elas eram fadinhas, sininhos, coisinhas, delicadinhas. Eu já achava o máximo saber dar estrela, algumas meninas até, entusiasmadas, me pediam para fazer ao final da aula. Eu fazia e me achava tão poderosa. A professora mór do curso era russa. O nome dela era Noêmia. E ela não gostava muito de mim. O clube era judeu, eu era filha de médium de Umbanda e uma yogue, mas acredito que ela não soubesse daquilo. Ela não gostava de mim, porque ela não gostava de mim. Um dia entrou na sala com aquele cheiro de russa (acredito eu que um dia irei à Moscou e sentirei aquele cheiro), olhou para mim e disse: “Você nunca será graciosa”. Assim, ponto. Eu nunca serei graciosa. Alguma coisa doía na garganta, mas eu não sabia dizer, e logo a aula acaba e eu ficava em frente ao espelho colocando os pés na cabeça, causando risadas com as judiazinhas. Outra vez comentou do meu cabelo. Disse que quem tinha o cabelo ruim como o meu não poderia esquecer a rede – eu tinha esquecido a rede nesse dia. Minha mãe me buscava e eu pensava que o cabelo dela era bem bonito, não era tão justo ter aquele cabelo ruim e ainda por cima esquecer a rede. O tormento durou pouco. Entrei no balé em fevereiro. Em abril, tivemos nossa primeira apresentação. Se tivesse sido a primeira vez que pisei num palco teria sido traumático, ainda bem que no ano anterior eu havia sido a borboleta mór da peça do jardim II. Que ufa! A apresentação ia tratar da páscoa. Iríamos usar a mesma roupa da aula, apenas com enfeites de coelhinha. Rabinho, orelha, bigodinho. A pompa. Alguma coisa, além de sangue, já corria no meu corpinho, espantosamente grande para a idade. Excitada, sem ser graciosa, eu me aprontei na frente do palco, cortinas fechadas, aquele burburinho da platéia familiar “oi, mãe, olha como eu sou bonita também”, Freud me segreda anos depois. Noêmia foi fazer considerações finais. (vou ter que tirar a música que havia colocado, rolou uma emoção escrota agora, não quero sentir isso, só quero escrever) Para cada menina, ela dava um recado: “Pezinho! Postura! Coluna! Sorriiiiiso!” Coisas assim. Minha vez se aproximava, e meu coração não podia caber mais naquele tórax infantil. Eu tinha olhos grandes, bolas castanhas, bem claras, com pintas dentro, uma cicatrizinha no nariz, um sorriso abraçador. Sobrancelha de gente boa, dizem até hoje. Eu era tão bonita. Eu tinha sete anos e eu era tão bonita, eu sei hoje. Pois Noêmia, russa, loira, olhos claros, uma das chatas fundadoras do balé russo no Brasil, me olhou dos pés à cabeça e disse apenas: “HORROROSA”. E seguiu adiante. Alô? Eu não to ouvindo nada! Alô? Mãe? Pai? Polícia? Deus? Quem? Nunca entendi crueldade com criança, pedofilia me dá arrepios no couro cabeludo, até um simples susto com pequenos, eu já sou contra. Fiquei trincada. Acho que é isso. Escolho bem a palavra pra explicar aquela sensação. Eu tinha um sorriso grande, largo. Eu fechei a boca de maneira bem assustadora, não assustada. A cortina abriu, era Páscoa, afinal, os pais com suas máquinas antigas batendo fotos, as mães emocionadas, eu, HORROROSA - com sotaque russo, please, na pontinha do pé, orelhas de abano escondidas numa faixa, que também escondia um cabelo, que era ruim, pelo visto. E porque, claro, minha memória é minha amiga, já não lembro de mais nada. Comecei a ter dor de barriga e vomitar quando minha mãe dizia que era hora do balé. Tipo vomitar mesmo. Cheguei a vomitar verde, mamãe disse. Ela estranhou. Eu, mais estranha ainda, não contava o ocorrido. Como ter 6 anos (eu disse 7 antes? Sete foi minha cirurgia, esse lance do balé foi com 6) e dizer para a mãe que a fodona do curso do balé, não um Zé Ruela, não o Juquinha chato do colégio, mas a Noêmia, a DONA do curso, disse que sua filha é HORROROSA. Ah sim! Disse também que JAMAIS será graciosa. Tudo olhando no olho. Como dizer? Não disse. Vomitava e fazia mais merda do que de costume. Minha mãe, boa pisciana, sensível, sacou clima ruim no ar e me tirou do balé em maio. Meus irmãos faziam ginástica olímpica e pareciam felizes, era assim que minha mãe queria me ver. E realmente, um lugar onde as pessoas dão estrelas, foi bem melhor para mim. Esqueci, esqueci, esqueci, esqueci. Afinal, o que era o pique esconde, o elástico, o papel de carta? Eu sempre funcionei com a lei das compensações. No ano seguinte, operei as orelhas. Anestesia geral. Punk Brewster. Me lembro do médico dizendo que eu ia dormir... domir..... Acordei com um capacete na cabeça. Perdi aula, tomei pontos. Ganhei minha única Barbie. Cantora, claro. Minha única Barbie foi uma que tinha um microfone. Não é incrível a vida? Às vezes? OK. Orelhas resolvidas. (tive que usar uma faixa de balé para manter, quem disse que consegui? o balé era alergia na certa, por isso até hoje, estou aqui, meio elfa, sem ser... OK. beleza. EU ESTOU ÓÓÓÓÓÓTIMA, hein, amigos? resolvi caps lockar para ninguém ficar preocupado. eu estou ótima) Sim, orelhas corrigidas. Mas o que fazer com pés que avançaram além da indústria dos calçados? O que fazer com um tamanho além das camas para adolescentes? Onde encaixar nariz, braços, pernas? (estou ouvindo Jorge Bem, uma música tão linda, chama “Quase colorida”)

Noêmia morreu. Um dia li no obituário (peguei essa mania da minha vó, de ler obituários, enfim, rolam uns nomes engraçados, eu gosto, poxa, sei lá, mil coisas). Dei uma gargalhada quando ela morreu. Morreu velha já. Eu era a única torturada por ela? Ou quantas meninas eu deveria procurar até fundar um clubinho? Cresci. Adolescentei. Achava um saco. Queria o elástico, o pique, o papel de carta. No colégio eu não era graciosa e nada linda. Eu era um ponto de interrogação ambulante. Transitava por todos. Falava com o menino mais bonito do colégio e com o mais nerd. Era representante de turma. Fazia os trabalhos mais legais (os professores faziam questão de escrever isso na minha camisa, no final do ano, eu sorria, vibrando). Claro que o mal sempre ronda. E por que essa menina, alta, magrela, é tão assim cheia de sorrisinhos, hein? Ah, não pode. Vamos acabar com ela? Vamos! Talvez seja esse o raciocínio da turma cruel. E passando no corredor ouvia baixarias, alusões a animais, especulações sobre minha opção sexual, comentários sobre pés, cheiro, nariz, cabelo, bunda. Tudo que você possa imaginar. Não vomitava mais. (não vomito desde criança, mas isso é outra história). Tampouco contava à minha mãe. Escrevia muito. E delirava. Adorava delirar deitada na cama. Os lugares que eu iria conhecer, as praias que eu mergulharia, os filhos que eu teria, os homens que eu beijaria. Envelhecer era urgente para mim. Sair da mediocridade do colégio era mais do que necessário. Ah, essa cabra que me habita e que fermenta lentamente.

Isso está ficando muito grande. Faz sentido. Foram tantos “horrorosas”, que o que eu esperava para mim hoje não é o que é. Eu esperava bem menos para mim. Hoje me olho no espelho, com cuidado para não quebrar e essa ser a minha memória mais chata dos meus 26 anos, e vejo uma peça bonita. Um conjunto de partes bacanas. Encaixadas, fazem um formato curioso. Eu sou curiosa. Se você está lendo até aqui, é porque eu sou curiosa. E é bom poder ser. A graça não veio, mas veio a curiosidade. Premiada. Vez ou outra, ainda faço caretas. Não sei ser bonita parada como essas belas. Quando percebo olhar constante para cima de mim, ou eu quebro um copo, ou conto uma piada, ou fico vesga – coisa que faço desde... hum, sempre? Outro dia o amor me olhava, e tem esse peso diferente. Silêncio, e o amor te olha. Nossa. Apelei para minha menina vesga guardada. Ao que ele comentou: Não precisa fazer isso não. Eu só quero te olhar e te ver assim, como você é: linda.

Derreti. Noêmia no inferno sendo azucrinada por trocentas crianças (d)eficientes. Rá! Deliro ainda. Eu, já bonitinha, devaneosa e cantarolando Jorge.


6 comentários:

  1. lindo isso de crescer e tomar forma do jeito da gente. encaixada, bonitinha, no espelho, um ser próprio.

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  2. Eu te acho linda e curiosíssima.
    Tá?

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  3. achei seu blog no Gúgol por causa do termo 'orelhas de abano' :)~

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  4. tem uma história engraçada.
    jaguar num avião ao lado do millor fernandes começa a ler a seção de obituário do jornal.
    e millor diz: vc perde tempo lendo isso?
    e jaguar responde: claro, vc pode ter gratas surpresas!!
    bj

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