terça-feira, 27 de abril de 2010

Madrugadas sem lua

escrito no final de doismil&8



Nós vamos inventar um diálogo. Inventando esse diálogo nós vamos falar sobre tudo que a gente quer e não consegue. Nós estamos aqui para tentar.

Eu tinha começado a brincadeira sozinha, ligava o computador, abria o Word e escrevia diálogos sem nomes, o que me atrapalhava muito no raciocínio, por vezes me perdia e escrevia uma frase pensando na personagem A, quando relia, percebia que B dizia tal frase, ficava bem cansada de corrigir e desistia de tudo. Uma certa noite, meu namorado perguntou o que tanto eu andava fazendo no computador, pois é sabido que só ligo a máquina para jogar paciência e para ver emails, mas isso só faço pela manhã, não posso te explicar porquê, pois teria que ter uma vida de 27 anos pra te contar, mas só abro correspondência pela manhã. Talvez minha vó tenha dito isso uma vez: “nunca abra correspondência à noite”, e eu dei continuidade a isso. Talvez eu esteja inventando. Então, dei pra mexer no computador pela noite e Voti estranhou e daquela maneira dele de não dizer que sente ciúmes, apenas está curioso pra saber sobre algum fato da minha vida – você sabe essa maneira? Um dia sentou ao meu lado enquanto eu delirava com algum diálogo. Eu nunca fui de escrever, o que torna tudo questionável e talvez duvidoso. Ora, mas porque não um talento tardio? Eu ainda posso ser campeã de kung fu, saibam. Eu tenho absoluta certeza que ainda posso. E ano que vem, talvez. Eu dizia que ele sentou ao meu lado, curioso. Expliquei que eram diálogos aleatórios. Eu juntava as frases que tinha ouvido na rua com alguma história minha quando criança ou qualquer outra coisa. Ele foi ficando animado, Voti era assim com qualquer proposta nova. Nunca vi homem para aceitar tanta coisa. Um amante do ineditismo. Tivemos muitas fases de tudo. Fase de jogar basquete todo domingo. Fase de aprendermos alemão (durou pouco, é verdade, mas podemos nos virar em Berlim, quem sabe?). Fase das palavras cruzadas, fase da comida vegetariana, fase meditação pela manhã, fase Santo Daime, fase Banco Imobiliário, fase poker com os amigos. Obviamente enjoamos de tudo e começamos uma nova etapa. Não decretamos nenhum fim, eles se aproximam, e antes que comentemos sobre eles, lá estou eu, como quem quer tudo, soltando aos ventos: “Esse final de semana vai ter um workshop de sexo tântrico aqui pertinho...” E pronto. Nem agendamos o fim das partidas de basquete na quadra, simplesmente não aparecemos e vamos a um encontro num salão pequeno, onde um senhor e uma senhora com cara de bons avôs, nos contam detalhes sórdidos de suas relações sexuais, que duram, em média, 3 dias. Devo dizer que sou sempre eu que chego com a novidade. Mas juro que só percebi isso outro dia. Me era tão natural. E Voti não é do grupo da teimosia: eu sugiro, ele acata e isso não é submissão ou falta de opinião, ele simplesmente gosta das minhas idéias. Eu o amo tanto e toda noite antes de dormir visualizo acidentes onde ele morre e também abandonos, onde eu, claro, sou a abandonada. O Mauro não pode fazer nada em relação a isso a não ser receitar remédios, mas eu estou preparada para tudo e não quero um estado que me encubra. O medo é recorrente e talvez se alguém bem próximo morrer, talvez, eu disse talvez, talvez eu relaxe.

Voti primeiramente acha que estou apenas escrevendo besteiras, “mania dessa gente se expor na internet”, aos poucos pede pra ler diálogos antigos e vibra, comentando em voz alta um ou outro, com muito, muito entusiasmo. Esse é o Voti.  Diz que quer brincar, eu penso que aquilo não é brincadeira, mas com esse homem tudo vira, então eu digo que seria mais interessante se nós fôssemos as duas pessoas. Escreveríamos para duplas, sim. Imaginamos como seria escrever para um trio, não nos pareceu bom, nada bom mesmo. Como quando tentamos fazer sexo com mais uma garota. Tentei de coração, juro, prometi a mim mesma que não lamberia grelo, mas um dedo? O que é um dedo perto do meu corpo espantosamente ajustado e sadio? Foda-se. Mas foi tão estranho e o próprio Voti não sabia o que fazer, coitado. Mega preocupado comigo, talvez se tivesse relaxado. Mas ao mesmo tempo se tivesse relaxado demais, a preocupada ficaria eu. E depois ainda quis saber se queria, pra balancear, fazer sexo com mais um homem. Esse é o Voti.  Imaginei o cara passando a mão em sua bunda e não gostei. Sugeri duplas e disse que seria mais bacana se não fôssemos sempre a mesma pessoa. Seria melhor cada um escrever 4 ou 6 travessões. Ele concordou obviamente, nunca ouvi “não” da boca desse homem. A não ser quando uma vez eu disse que já achava que era hora de termos um filho, cinco anos de relacionamento, o que mais que você acha que pod....
- Não, Gala, gora não.
Ele não chegou a vislumbrar nomes infantis ou meu nariz belíssimo num infante mesclado nosso. Ele não fez nenhuma cara um pouco mais fofa que eu sei que ele sabe fazer, faz sempre quando eu imito um golfinho, por exemplo. Descobrimos que eu sabia imitar um golfinho numa das nossas fases “natação”. Isso virou uma febre. A imitação do golfinho. E sempre que eu faço, para meu espanto, ele não ri, pois eu gargalharia se me visse, como vi uma vez num vídeo. Voti  sorri fofo e eu vejo na cara dele que ele quer ter filhos comigo. Que ele quer meus traços, minha eloqüência talvez, minha boa capacidade de respirar embaixo d’água, minha visão sem miopia, meus belos peitos mesmo com preguiça de sutiã. Ele faz cara de quem quer isso em outro ser humano.
Mas “não, Gala, agora não” sem cara fofa é dilacerante. Nessa noite nem dormi com medo de acidentes e abandonos. Sonhei com uma capa gigante de urso que eu tinha que carregar até uma orla deserta. Voti me esperava impaciente. Nós tínhamos fome, e a capa pesava muito. Um diretor de teatro, nosso amigo, aparecia e dizia que nós precisávamos ensaiar mais. Acordei suada e atrasada.
- Podemos escolher os temas ou vamos aleatoriamente?
É porque ele queria ser outra pessoa que abraçou com tanta gana a idéia. Ou porque esse era o Voti.  O Voti é assim, Gala, é assim. Você não conhece o homem que ama?
- Bem, acho que a primeira frase diz muito sobre o resto, então quem começar, acaba que vai ditar o tema... não?
- Ótimo, ótimo. – ele fazia com aquelas sobrancelhas que eu tanto tenho tesão, eu lambo aquilo ali, aquilo ali é meu, nem ele sabe. Amo.


Nós estamos aqui para tentar.

- Nós estamos aqui para tentar. (eu comecei bem devagar, com o peso do seu olhar sobrancelhudo sobre meu corpo agasalhado, é agosto)
- Tentar o quê, Guta? (eu digitei bem devagar pois assim é meu teclar quando o homem que eu amo está ao meu lado e espia o nascer das idéias que pipocam na cabeça)
- Caio, lembra uma vez que você disse que eu tinha esquecido uns brincos na sua casa? (eu invento lentamente, mas já sei onde quero chegar com essa história)
- Hum... não sei, acho que lembro. Quais eram?
Voti me interrompe, proclamando ser sua vez, como num susto, eu rolo minha cadeira para o lado, torcendo para que ele continue a história da mesma maneira que eu estava conduzindo. Mas Voti  do improviso.
- Que nomes engraçados você usou. Guta! Guta? Hum... peraí, deixa eu ver.... “Uns brincos de pérola, meu amor, você disse que eu esqueci na sua casa, não lembra? Ah, que memória, Caio”. – ele digitou. Eu achei engraçado e quase gay, mas o amei mais ainda.
- Por que quer falar sobre aqueles brincos agora, Guta? Você não percebe que está tudo acabado entre nós?
Essa parte me doeu o rim. “tudo acabado entre nós” é pra novelas mexicanas. Mas não posso julgá-lo, ele está começando, é sempre assim, ele começa assim, daqui a pouco está ganhando medalha de ouro no remo da Lagoa. Voti, Voti...
- Que mania ridícula de colocar fim no meio das pausas!
Esse é o Voti.
- Fala baixo e fala logo sobre esses brincos, pelo amor de Deus.
Também temos isso nas nossas fases: quase não nos falamos durante os atos. Yogas no silêncio, sim, claro. Mas basquetes, jogos com baralho, caminhadas, natação, dança de salão, tango, noites de vícios em boates em Copacabana, tudo no silêncio. Depois relembramos com carinho e tecemos um ou três comentários. Mas é só.
Ele se afasta da frente do computador. Eu entro e agora eu vou dizer uma coisa que eu sempre quis. Eu devo? Eu vou.
- Eu nunca te disse antes, mas você me deus 2 pares de brincos: um que realmente era meu. De pérolas, claro. E um outro que não era meu, seu idiota.
Eu queria ter dito prendedor de cabelo, na verdade. Mas eu quis logo atacar. Ele não lembra?
- Guta, o que você está querendo dizer?
Homens são tolos, e eu posso agora generalizar. Essa é a minha vez.
- Estou querendo dizer que alguma mulher esqueceu os brincos na sua casa e você, coitado, achou que eram meus. Eu jamais, JAMAIS (fico na dúvida quanto aos caps lock, mas acabo utilizando) teria um brinco como aquele. (pausa) (escrevo pausa e acho bonito isso, Otto não me olha, apenas olha para a tela. Ele realmente está gostando dessa fase?) E eu não quis destruir aquele dia pois aquele tinha sido o dia do “tudo bem”, você lembra desse dia? Que a gente fez um poema hilário onde citávamos várias merdas e sempre rebatíamos com “tudo bem”?
- Eu lembro desse dia. Eu não lembro dos brincos.
Eu quero escrever mais, mas já foi combinado pelos movimentos que cada um só escreve 4 travessões. Vamos ver.
- E por que você lembraria? A sua vida era tão grandiosa e inventada que você jamais lembraria de como eram determinados brincos. – ele digitou. Me pareceu muito concentrado.
- Já parou pra pensar que eles poderiam ser da namorada do Daniel? Eu vi seus brincos de pérola e depois vi outros brincos e sei lá... Porra! Naquela época você usava um brinco diferente a cada dia, eu só pensei que... sei lá... Me desculpa, Guta. A gente vai brigar por isso agora? Tanto tempo depois?
Eu estou com sede, talvez deva arriscar pegar uma água e só voltar quando os 4 travessões estiverem completos. Melhor esperar.
- Eu só queria te machucar um pouco nesse final. Pra ficar igual.
Agora estou sem graça de escrever visto que Voti escreve bem. Muito bem. Nunca sofri nas fases de nada, pois o objetivo é o hedonismo, mas bem já quis ganhar alguma corrida ou partida de buraco. Nunca consegui. Essa sou eu.
- Quem tá se machucando é você, Guta. Eu tô bem, se o brinco não era teu, eu continuo bem. Grandes merdas, um brinco, um brinco! Olha o nosso tamanho!
Essa sou eu tentando escrever como ele agora. Engraçado isso.
- Caio, quantas vezes os seres humanos podem passar por isso? Quantas vezes a gente diz que ama pra depois dizer que não ama mais? Quantas vezes? – digitei com ânsia.
Uma amiga me falou isso outro dia. Eu entendi o que ela quis dizer, mas acho que não consegui reproduzir tão bem. Consegui? Quantas vezes se jura que sim e quantas vezes se jura que não? Quantas? Eu consegui?
- Eu também me pergunto se um dia não acaba. Quando é que vai parar?
- Eu sei que eu parei.

Nós estamos aqui para conseguir.

Minha vontade de dizer que queria parar acabou saindo nas letras. Eu estava com um pouco de sono, apesar de muito curiosa pra ler o que ele iria escrever. Eu gosto muito de ver Voti conversando com os amigos, é quando eu o conheço um pouco mais. Às vezes até me choco de perceber que eu não tinha conhecimento sobre um ou outro tema. Mas eu gosto.
- Os últimos diálogos podem ser seus, querido.
- Já, bonita?
- Bateu um soninho, amor. Desculpa. Amanhã eu tenho médico tão cedo.
- Médico de quê mesmo?
- O neurologista, lembra?
- É verdade, vai ver se está ficando biruta de vez.
- Não fala assim que eu tenho medo.
Se esse símbolo da Wolksvagen que eu insisto em carregar na testa um dia explodir? Não. Não. Não. NÃO! Aprendi que dizer não em voz alta enquanto penso desgraças me traz paz. Que absurdo.
- Tá, vou terminar. Ficou pequeno para um diálogo, mas tudo bem, podem ser só flashes de conversas, então. Tudo bem.
Ele coça a barba, deve estar pensando que já está na hora de fazer, mas eu gosto tanto desse tamanho. Tanto.
- Caio, só me diz uma coisa?
- Digo todas as coisas.
Ele está digitando tão rápido.
- Quanto tempo você acha que a gente vai durar?
Meu corpo inteiro sente uma corrente gélida de ar. É agosto, é terrível.
- Até o fim.


Nós estamos aqui para?

Voti ri, salva como “diálogo 1” e diz que não era sua intenção terminar o texto com a palavra “fim”. Eu vou para o quarto com um copo d’água na mão. A cama, por essas épocas, deveria se auto aquecer antes dos donos deitarem. É terrível. Aperto PLAY no som. Começa “The roller coaster ride” daquela banda que considero um tanto depressiva para a minha vida tão solar, mas que incrivelmente me enfeitiçou com apenas uma música. Essa música. Voti deita também, acho que ele está excitado. Eu verifico me enroscando com as pernas. Ele está excitado, e eu fico feliz como se a rigidez de seu pau me elogiasse. Elogiasse minhas pernas que eu tanto suo para deixá-las assim. Eu conheço esse homem há mil oitocentos e vinte e cinco dias, e lhes digo que nunca consegui me envolver com outra pessoa mesmo sabendo que ele sim. Não posso assinar tratados de certezas, mas tenho desconfianças que exorcizo nas minhas aulas de tiro e nas consultas com Mauro. Não consigo trair Voti,  embora o mundo se favoreça para isso: é incrível a oferta de pirocas aptas a me comerem, um número quase igual de quando era solteira, o que me deixa triste com o fraco poder se um estado civil. Um dia quase o fiz. Obviamente por vingança, pois assim são as mulheres. Andava desconfiadíssima de seus sumiços noturnos e dei pra me engraçar com um homem que sempre via na aula de tiro. Sempre, sempre me olhou como se fosse me comer muito bem. Não sei explicar esse olhar, talvez você já tenha sentido. É isso. Mas um pensamento enlouquecedor me impediu e me perturba até hoje: não posso trair Voti,  pois não posso namorar um corno. Calma. Você percebe? Traindo Voti, eu o coloco numa classificação baixa de corno. E não posso ir ao cinema, olhar para o lado e pensar “meu namorado é um corno”. Vocês podem? Machista? Talvez. O amor nem sempre ganha das vicissitudes eu sei, eu sinto. E ao longo da vida vivida, são outras palas, outras pleuras que nos permitem a continuidade. Como classificar com apenas um nome um universo toráxico, como padronizar sentimentos? Vamos parar por aqui. Voti está ao meu lado e antes de apagar a luz, diz que tem uma novidade, imagino coisas sexuais. Ele diz que vai ser tio. Sua irmã está grávida de 2 meses. A música acaba. Só queria essa, aperto stop.
- Que notícia maravilhosa, Tivo.
Chamo Voti de Tivo, às vezes. Ele me chama de Bonita quase sempre, às vezes improvisa palavras que rimam com Gala, eu acho graça. Ele é bom nisso. Damos um abraço frêmito, o frio existe e também um ser humanozinho dentro da barriga de sua irmã. O abraço sela algum instante que sabemos que existe. Ele me beija com gosto de pasta de dente, o que me constrange um pouco pois eu esqueci de escovar os dentes e a última coisa que comi hoje foi um pão com manteiga e presunto. Ele parece não se importar, diz que gosta do cheiro da minha boca, ele diz coisas bonitas demais nessas horas. Quando nos conhecemos tive medo de ser um charlatão, um repetidor de “frases que dão certo na hora H”, você sabe do que estou falando. Têm essas pessoas. Que dizem frases que não saem com a forma do inédito, elas saem já lapidadas, redondas, o que eu questiono. No início questionei e quis mostrar que aquilo ali era novo, o meu corpo tem outro gosto, o meu cabelo é só meu, mas incrivelmente ele continuou falando coisas que se eu parasse pra pensar, até eram meio automáticas, mas tão próximas da perfeição. Até que um dia desisti e conclui: ele é perfeito. Para essas frases. Não é automatismo. É balé. É uma dança. Que sai da boca dele e entra no meu ouvido e dá choque por dentro. Choque. Maior choque.
- Voti?
- Fala.
- Quanto tempo você acha que a gente vai durar?
- Galaaaaa...
Quando ele prolonga o 'a' é porque não quer conversar sobre isso. Também não sei porque lancei essa pérola no espaço. Essa sou eu: nada automática e nada redonda. Uma pedra brutona.
- É terrível, não é? – eu alertava. No primeiro amor a gente sempre responde: Pra sempre. Agora a gente responde o quê?
- Gala, garotilha... a gente vai durar até o fim.
Me abraçou como se fosse um polvo e eu imaginei a cara do primo do filho da minha cunhada. Essa fase dos diálogos durou só essa noite. No dia seguinte, deu-se início a uma nova fase: compramos um papagaio. E nos empenhamos em ensiná-lo a cantar.

4 comentários:

  1. Letrucia, sou sua fã e ponto.
    :o)

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  2. daniela moreira (danitamoreira@gmail.com)11 de maio de 2010 às 20:08

    e tão fácil sentir o que vc escreveu que nem parece que foi escrito. sobrepôe a linguagem.
    queria ter sido eu a escrever, este texto, mas foi vc.

    gostei muito!

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  3. muito bom,
    a alternância de fases e o "até o fim" do Otto me lembraram a tua música Potência.

    tem que dar.

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  4. Vc não tava acostumada a ouvir negativas da parte dele, logo, isso te surpreendeu e machucou. É a primeira hipótese que pensei. Ou vc queria mesmo ter filho/a naquela época e por isso doeu. Sabe-se lá, né. Fiquei me questionando aqui.

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